Redressing Gendered Health Inequalities of Displaced Women and Girls

University of Southampton

A Covid-19 ameaça a saúde e os direitos de mulheres e meninas migrantes na América Latina

A Covid-19 ameaça a saúde e os direitos de mulheres e meninas migrantes na América Latina

As emergências sanitárias exacerbam quase todas as formas de injustiça social no Sul Global. Preconceitos estatais, falhas de governança e respostas políticas inadequadas e inapropriadas deixam legados que podem ser tão graves quanto a própria doença.

Em situações de crise, o fornecimento de serviços públicos e o acesso a serviços de saúde e de bem-estar podem se deteriorar rapidamente. Os impactos são ainda maiores para grupos e populações em situação de vulnerabilidade, tais como mulheres em situação de pobreza, minorias étnicas e raciais, pessoas migrantes, entre outros.

Comunidades e pessoas forçadamente deslocadas pela guerra, conflito e/ou violência são excepcionalmente vulneráveis à Covid-19, como a Comissão Lancet recentemente demonstrou. Sendo o distanciamento físico praticamente impossível, e considerando a realidade de moradias superlotadas e com acesso compartilhado à água, políticas públicas baseadas em quarentena e ‘isolar-se em casa’ têm valor limitado para esses grupos.

Para mulheres e meninas migrantes, que correspondem a 50% de todas as pessoas migrantes e refugiadas, e cujas necessidades são invisibilizadas mesmo em época de ‘normalidade’, os riscos de saúde gerados em tempos de Covid-19 são gigantescos.

Pandemias não são neutras e, em geral, exacerbam e impactam as já existentes desigualdades sociais com base no gênero. Sabemos que crises sanitárias anteriores, tais quais o Ebola, o Zika e o SARS, demonstraram reforçar os papéis sociais de gênero, como o de cuidado, e reduziram o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, seja devido à redução de insumos, remédios, e de especialistas, seja porque os recursos foram redirecionados em tempos de crise, constatando-se, assim, que as prioridades para as políticas públicas (normalmente desenhadas por homens) não incorporavam as necessidades específicas de mulheres e meninas.

Os níveis de violência doméstica e de gênero aumentam. Para mulheres e meninas migrantes, que frequentemente dependem de organizações humanitárias e de caridade para ter acesso a serviços de aconselhamento psicológico, de saúde sexual e reprodutiva, a testes de DSTs e de HIV, além de informações sobre e acesso a métodos contraceptivos, aborto, e cuidado ginecológico, a Covid-19 pode significar uma privação de serviços de proteção essenciais de que essas mulheres e meninas dependem, e pode exacerbar os riscos que elas já enfrentam para seu bem-estar e suas vidas.

Se faz necessário um paradigma de políticas públicas que tenha como base tanto o reconhecimento da dignidade de gênero, quanto as obrigações estatais de respeitar, proteger, cumprir com e fazer cumprir, os seus compromissos de direitos humanos

Como a Covid-19 irá impactar a saúde e o bem-estar deste grupo já excepcionalmente vulnerável? Como as políticas públicas podem dar respostas a fim de minimizar os impactos imediatos e promover a saúde de mulheres e meninas migrantes a longo prazo? Consideramos tais questões especialmente em relação aos números cada vez maiores de mulheres e meninas migrantes na América Latina e como parte de um chamado a reparar as desigualdades de saúde de gênero em contextos de crises migratórias.

Sugerimos, portanto, que organizações internacionais e Estados de trânsito e de residência urgentemente destinem seus recursos para abordar as necessidades de saúde imediatas e as de longo prazo de mulheres e meninas migrantes e refugiadas. Assim, se faz necessário um paradigma de políticas públicas que tenha como base tanto o reconhecimento da dignidade de mulheres e meninas migrantes, quanto as obrigações estatais de respeitar, proteger, cumprir com e fazer cumprir, os seus compromissos de direitos humanos de modo que a saúde das populações vulneráveis seja assegurada, contribuindo para quebrar um ciclo de privação de direitos e de exclusão que tais grupos experimentam.

Migrantes e refugiadas na América Latina: números crescentes, necessidades de saúde ignoradas

Na última década, El Salvador, Guatemala e Honduras viram um rápido incremento no número de solicitantes de refúgio e de refugiados em direção ao México e aos Estados Unidos – um total de 396.000 pessoas, equivalente a um aumento de 58% desde 2016. Na Venezuela, 5 milhões de pessoas abandonaram seu país em direção à Colômbia, ao Brasil, Equador e Caribe desde 2014. As mulheres, por sua vez, representam por volta de 30% do número de migrantes da América Central no México e 50% do total de venezuelanos no Brasil e na Colômbia.

Essas mulheres e meninas em geral enfrentam maiores riscos relacionados à violência, intimidação, tráfico de pessoas, abuso, estupro, assédio sexual, bem como situações de discriminação e de estigmatização, além de sofrerem com barreiras linguísticas, exclusão social, pobreza e devido a diferenças socioculturais. Tais riscos podem ser ainda mais amplos devido às restrições de viagem internas e externas, às dificuldades de acesso a serviços de saúde e a medicamentos em zonas fronteiriças e de abrigamento, assim como devido à falta de documentação.

Muitas migrantes trabalham no setor informal, sem proteção social, e assumem responsabilidades de cuidado de crianças e de outros membros de sua família e de sua casa. Mesmo sem considerar uma pandemia, refugiados, migrantes, ou deslocados internos devido a conflitos, desastres naturais ou pobreza extrema, frequentemente enfrentam deficiências nutricionais e de saúde próprias de viver em campos ou abrigos superlotados e com enormes barreiras para acessar serviços de saneamento básico e de saúde.

Um exemplo disso é Boa Vista, cidade brasileira em Roraima, estado da região Norte do país, e principal porta de entrada no Brasil para aqueles venezuelanos que fogem da atual crise econômica, política e social, e do colapso dos sistemas de saúde na Venezuela.

De acordo com dados da Operação Acolhida, somente 3 dos 13 abrigos onde reside boa parte dos venezuelanos são considerados de baixo risco para a propagação do novo coronavírus. Além disso, um número cada vez maior de venezuelanos se encontra em situação de rua, após serem desalojados em consequência do crescente número de abrigos fechados em países da América Latina, o que, por sua vez, afeta negativamente a percepção pública sobre refugiados e migrantes.

O abandono da política de saúde é particularmente preocupante entre as mulheres indígenas, como aquelas das comunidades Warao, que são parte significativa dos milhares de venezuelanos que se destinam a Boa Vista

Neste contexto, as restrições de acesso a serviços de saúde aprofundam a negligência vivenciada pelas populações migrantes e refugiadas. Para abordar essa situação, algumas respostas do governo brasileiro e das organizações internacionais localizadas em Roraima consistiram, por exemplo, em criar centros de saúde emergenciais, mas seu público-alvo são os pacientes afetados e infectados pela Covid-19, ao invés de prestar serviços de saúde mais amplos.

O abandono da política de saúde é particularmente preocupante entre as mulheres indígenas, como aquelas das comunidades Warao, que são parte significativa dos milhares de venezuelanos que se destinam a Boa Vista, em Roraima, no Brasil. O abrigo específico dos Warao em Boa Vista é considerado particularmente vulnerável caso algum de seus residentes seja contaminado pela Covid-19. As más condições de saúde, bem como a alta prevalência de doenças infecciosas, em particular o HIV, juntamente com barreiras de acesso aos serviços de saúde devido a diferenças culturais e linguísticas, são as condições de crise sanitária e de saúde que serão ainda mais aprofundadas com o advento do novo coronavírus.

Essa também é a realidade em Bogotá, Colômbia, que abriga quase 20% dos quase 2 milhões de venezuelanos vivendo no país, com problemas similares. Incapazes de pagar o aluguel, muitos imigrantes e refugiados venezuelanos estão desprotegidos e em situação de rua.

O acesso à atenção médica em tempos ‘normais’ já revela um problema considerável na Colômbia, haja vista que o sistema nacional de saúde exclui dos serviços considerados não emergenciais os migrantes irregulares (cerca de 20% do total de imigrantes no país). Além disso, o aumento da xenofobia significa que os migrantes venezuelanos com frequência são acusados de difundir doenças transmissíveis e, agora, de transmitir a Covid-19 na Colômbia.

Tanto o Brasil quanto a Colômbia fecharam suas fronteiras com a Venezuela, e a Colômbia deportou número considerável de migrantes de volta à Venezuela após o início da pandemia da Covid-19. O Brasil, por sua vez, editou decreto admitindo a possibilidade de devolução de migrantes, casos que demonstram clara violação ao princípio do non-refoulement/não-devolução. Essa situação coloca mulheres e meninas migrantes frente a um perigo ainda maior. A negativa ao refúgio e ao abrigamento significa também a negativa ao direito a saúde. A restrição de acesso a abrigo e a refúgio consequentemente interrompe o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva e obstaculiza o acesso a atenção médica adequada para a prevenção da violência de gênero, em um momento em que as mulheres e meninas necessitam ainda mais desses serviços.

Se essas violações não forem reparadas, as consequências para mulheres e meninas migrantes podem ser catastróficas, em termos de acesso a métodos contraceptivos, a remédios, produtos de higiene íntima, bem como de aumento de casos de gravidez indesejada, falta de acesso a aborto seguro, incremento do risco de morbidade e mortalidade materno-infantil, com a consequente debilitação do princípio de autonomia e dos direitos à igualdade e à dignidade de mulheres e meninas.

Não deixar ninguém para trás: a importância dos direitos humanos

Em 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável prometeram a introdução de políticas de desenvolvimento global baseadas em um compromisso significativo com os direitos humanos dos mais pobres e vulneráveis. No entanto, mesmo antes do surgimento da Covid-19, já havia sérias dúvidas sobre o ritmo e a direção das transformações globais e do compromisso com o objetivo de “não deixar ninguém para trás”. Se os governos estão realmente compromissados, então não podem ignorar os direitos dos mais vulneráveis, sobretudo em tempos de pandemia.

Como argumenta Sara Pantuliano, diretora do Overseas Development Institute, uma das organizações de referência em temas de desenvolvimento no Reino Unido, defender os direitos humanos como uma ferramenta para abordar as desigualdades é essencial. Nesse sentido, atitudes que negligenciem os direitos humanos das mulheres podem aprofundar ainda mais as desigualdades, e este é, portanto, um dos pontos mais críticos em relação a como governos e organizações internacionais devem se posicionar durante a pandemia

A solução? Situar os direitos humanos dos mais vulneráveis, particularmente o das mulheres e meninas migrantes e refugiadas, no centro das respostas políticas

O que isso significa para mulheres e meninas que se deslocam por situações de conflito, pobreza e violência política? Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a Covid-19 é apenas o mais recente dos muitos desafios que afetam o bem-estar dessas mulheres e meninas. É importante, portanto, não esquecer que elas já não tinham acesso integral aos seus direitos, mesmo antes da pandemia.

Por esta razão, é crucial que a naturalização da violência de gênero e a invisibilização das populações migrantes seja contestada e combatida de maneira permanente. Nesse sentido, é incorreto afirmar que a Covid-19 dificulta a suposta ‘normalidade’ de suas vidas, uma vez que ele aprofunda ainda mais o status permanente de desumanização a que essas mulheres e meninas estão submetidas.

A solução? Situar os direitos humanos dos mais vulneráveis, particularmente o das mulheres e meninas migrantes e refugiadas, no centro das respostas políticas. Isto requer um compromisso dos governos de concentrar recursos apropriados para abordar as necessidades que a Covid-19 gera para essas mulheres e meninas para além das emergências imediatas, para que não só sejam mitigados os riscos que elas sofrem, mas que efetivamente seja defendida sua dignidade.

Para as políticas públicas atuais e futuras, mulheres e meninas migrantes devem ser escutadas e suas perspectivas incorporadas nas respostas do governo a esta e a outras crises de desenvolvimento. Agora e depois da crise gerada pela Covid-19, necessitamos de um enfoque de saúde pública baseado nos direitos humanos, que aborde diretamente as desigualdades de saúde globais de gênero, afirme a indivisibilidade dos direitos humanos e promova a integridade e a dignidade das pessoas vulneráveis e que assegure a responsabilização das autoridades estatais que têm obrigação de fazer cumprir esses direitos.

Os governos da América Latina e em outros locais têm obrigações legais e éticas em virtude do direito internacional de garantir o melhor serviço de saúde possível para todos e todas. Nesse sentido, não é possível que governos escolham quais direitos, ou de quem, serão garantidos, e quais – ou quem – serão ignorados. Concordamos com a Comissão Lancet para as Migrações que transparência e responsabilização nas políticas públicas destinadas a comunidades migrantes, bem como recursos apropriados e sensíveis a necessidades relacionadas ao gênero são essenciais em qualquer crise sanitária, incluindo a que vivemos atualmente.

Como uma resposta à crise atual, reivindicamos a suspensão de todas as tentativas, legais ou não, de limitar o acesso de migrantes e refugiados a serviços de saúde, e o fim das repatriações e deportações forçadas; interpelamos ainda que os governos trabalhem de forma coordenada e transfronteiriça para desenvolver políticas para combater xenofobia e racismo que enfraquecem os direitos dos migrantes à saúde e para garantir que os serviços de saúde apropriados, particularmente aqueles específicos à saúde sexual e reprodutiva, alcancem as mulheres e meninas migrantes e refugiadas a curto, médio, e longo prazo.

Por Natalia Cintra, Jean Grugel e Pia Riggirozzi

Original publicado no site Open Democracy, em 15 de Abril de 2020.